Construção civil vive crise pós Copa do Mundo

Retomada em 2018 fracassou no governo Bolsonaro com falta de políticas para o setor

Foto: Daniel Brasil / Portal da Copa

Por Manoel Ramires/Senge-PR*

Os grandes eventos esportivos e os Programas de Aceleração do Crescimento (PAC) trouxeram para a engenharia civil brasileira uma “década de ouro” entre 2003 e 2014. O vigor do setor, no entanto, foi implodido após a Copa do Mundo no Brasil com a crise econômica e política e com a operação Lava Jato. A Construção Civil até ensaiou uma retomada do crescimento em 2018, mas levou um novo baque a partir de 2019, já no governo de Jair Bolsonaro (sem partido), com a falta de investimentos em infraestrutura e políticas de desenvolvimento para o país. O “esfarelamento” da engenharia civil já era sentida – destaque-se – no segundo semestre do ano passado, bem antes da pandemia de coronavírus atacar os brasileiros, seus empregos e a economia.

O estudo “A Construção Civil e os Trabalhadores: panorama dos anos recentes”, organizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), mostra que um dos setores mais importante do país na geração de empregos e de alavancagem do Produto Interno Bruno (PIB) se encontra sob forte ameaça. Ainda mais diante da iniciativa do Governo Federal em fevereiro deste ano de abrir espaço para que empresas internacionais participem dos processos licitatórios de grandes obras no país, desprotegendo as construtoras brasileiras sob o argumento que elas são corruptas.

Em Davos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, prometeu incluir o Brasil no “Acordo sobre Compras Governamentais”, a pedido da Organização Mundial do Comércio (OMC) para permitir o “tratamento isonômico” a estrangeiros que tenham interesse em participar de licitações e concorrências públicas no país.

Na avaliação de engenheiros brasileiros, por outro lado, a engenharia brasileira não teme a competição. Pelo contrário, ela defende regras que deem condições de entrar nesta disputa. No entanto, o que o “juiz Guedes” propunha é que as empresas brasileiras “joguem de igual para igual” com as estrangeiras em um cenário em que o setor nacional foi enfraquecido nos últimos anos e carece de incentivos atualmente.

Mas que cenário é esse?

O setor da Construção Civil apresentou forte alta no período de 2004 a 2013. Para a doutoranda da USP, Raquel Rodrigues lage, na obra A construção pesada Brasileira, as condições para o setor se fortalecer a partir de 2000 passam tanto pela proteção ao mercado interno e barreiras à participação estrangeira quanto pelo modelo de concessão de serviços permitindo a diversidade. Houve a retomada com incentivos governamentais e demanda interna por outras de infraestrutura.

Presidenta Dilma Rousseff durante cerimônia de entrega de unidades habitacionais em Feira de Santana/BA e entregas simultâneas em Teresina/PI, em Itabuna/BA, em Ananindeua/PA, em Itapeva/SP e em Susano/SP. Foto: Roberto Stuckert Filho/

“Os programas de aceleramento do crescimento (PAC 1 e 2) focaram em investimentos em energia, refinarias, gasodutos, rodovias, ferrovias (norte-sul, transnordestina e oeste-leste) e transportes. Com investimentos de R$ 503,9 bilhões até 2010, sendo R$ 67,8 bilhões do orçamento da União e R$ 436,1 bilhões de estatais e da iniciativa privada”, relata a doutora. Em 2010, por exemplo, enquanto o Produto Interno do país cresceu 7,5%, o da construção civil bateu em 13,1%.

É a mesma avaliação do engenheiro civil, diretor do Senge-PR e assessor de Gestão de Políticas Públicas junto ao CREA-PR, Samir Jorge. Para ele, o país adotou política de investimentos com programas de inclusão social e programas governamentais (PAC, MCMV, Criação de Universidades, Política externa, dentre outros).

“Nos governos dos presidentes Lula e Dilma (PT), o setor privado passou a perceber que estava circulando mais recursos e ampliou seus investimentos. Bancos privados baixaram juros, a exportação bateu recordes sucessivos, a indústria automobilística cresceu, setor aéreo cresceu, dentre outras ações. Por conta das ações governamentais, o setor privado passou a investir muito mais que o próprio governo”, confirma o engenheiro.

Essas condições não existiram antes do governo petista. Com o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a prioridade não era o investimento público e o desenvolvimento econômico do país, segundo o engenheiro civil e mestre em Desenvolvimento Econômico pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), Valter Fanini. Na sua avaliação, antes da década de ouro, o principal objetivo do governo era manter o controle da inflação e não fazer a economia crescer. Para isto toda a política econômica voltou-se para controlar um eventual excesso de demanda e não para ampliá-la. O foco político era privatizar o país.

“Ou seja, conter a demanda para que não houvesse pressão sobre os preços. Dessa forma o governo Fernando Henrique Cardoso promoveu um elevado contingenciamento do orçamento fiscal, reduzindo gastos e investimentos públicos, manteve a taxa básica de juros elevada desincentivando os investimentos privados”, avalia Fanini, em entrevista que você lerá a seguir neste material especial.

Muito dinheiro, desperdício de recursos

Embora o período entre 2003 a 2014 tenha sido de grandes projetos, muitos deles não saíram do papel ou ficaram mais caros do que o orçado inicialmente. Apenas duas das 10 maiores obras do PAC foram concluídas. Pouco mais de 9% no governo Lula e 26% na Era Dilma. Houve sobrepreço em 49% e a Lava Jato investigou nove grandes obras.

Crise política, financeira e ensaio da retomada

A partir de 2014, a instabilidade política e o noticiário policial foi fundamental para que o setor passasse a apresentar resultados negativos. Foram quatro anos de quedas superiores à própria queda do Produto Interno Bruto (PIB) total. Tanto que a retração de 2016 do PIB nacional em 3,3% refletiu em uma queda de 10% da construção civil. As grandes obras da Copa do Mundo como estádios, mobilidade urbana, corredores de ônibus, aeroportos e infraestruturas para as Olimpíadas cessaram.

“Os impactos da Operação Lava Jato, aumento dos juros e da inflação, restrição ao crédito e desemprego, além da grave crise política, foram fatores que impactaram fortemente o crédito no setor no período em análise”, avalia o documento do DIEESE.


Operação Lava Jato revelou casos de corrupção e ampliou a crise política. Foto: André Richter – Agência Brasil/EBC

Desde que assumiu o segundo mandato, a presidente Dilma Rousseff sofreu um processo de desgaste pelo então senador derrotado nas urnas, Aécio Neves (PSDB), turbinado pela atuação do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB), e as pautas bombas no Congresso, e pela pela cobertura da mídia das prisões de petistas e aliados políticos comandadas pelo ex-juiz Sérgio Moro em parceria com o procurador da República, Deltan Dallagnol. A desconstrução implodiu o governo e levou ao impeachment em agosto de 2016.

Neste turbilhão, as obras pararam. As construtoras investigadas quase quebraram. Segundo dados da Pesquisa Anual da Indústria da Construção (PAIC 2018), “o setor público perdeu representatividade como cliente da indústria da construção, com queda de 12,5 p.p. nos últimos dez anos (de 43,2% para 30,7%) nos três segmentos: Obras de infraestrutura, passando de 61,5% para 50,4%; Construção de edifícios, caindo 6,7 p.p., de 28,6% para 21,9%; e os Serviços especializados para construção, de 20,4% para 19,3%”.

O crédito para a construção civil só voltou a crescer apenas em 2018, puxado inicialmente pelo crédito para pessoas jurídicas (empresas). Época em que o governo do presidente Michel Temer (MDB) adotou a política de liberação do FGTS para ser usado na compra e reforma de casas.

Em 2017 foram liberados quase R$ 50 bilhões para os brasileiros. “O movimento de recuperação do crédito imobiliário para Pessoa Física ocorreu nos anos de 2018 e 2019, quando houve crescimento de 7,3% e 7,4%, respectivamente”, calcula o estudo. Por outro lado, de abril a dezembro de 2014, às operações reais de crédito somaram R$ 138,8 bilhões e, no ano completo de 2019, R$ 109,3 bilhões. Ou seja, “o montante de recursos liberados não voltou ao mesmo patamar de antes da crise do setor”.

Para o engenheiro Civil, diretor do Senge-PR e assessor de Gestão de Políticas Públicas junto ao CREA-PR, Samir Jorge, as escolhas políticas do Governo Temer, no momento da crise, foram erradas. A agenda neoliberal desestimulou a economia. Ele comenta que nos anos de 2018 e 2019 houve crescimento de desemprego passaram dos 11%.

“Tal fato impactou sensivelmente a geração de empregos dos engenheiros. Com a economia em retração e a falta de investimentos públicos, que se repetiu desde 2015. O modelo conservador imprimido pelo Governos Temer e Bolsonaro tiraram o dinheiro de circulação e as incertezas econômicas e políticas se ampliaram, gerando um processo próximo à recessão e com isso, os empregos dos nossos engenheiros diminuíram na mesma proporção”, comenta. Esses impactos no trabalho dos engenheiros serão abordados na reportagem “Oscilações na engenharia civil trouxeram forte impacto nos trabalhadores.

País sem projeto

Troca-se presidente, troca-se o rumo da construção civil. Segundo avaliação do DIEESE, o setor vinha apresentando maior atividade, a partir do 2º semestre de 2019. No entanto, essa tendência não se manteve em 2020. “Mesmo antes da pandemia da Covid-19, o setor já dava sinais de desaceleração”, pontua o estudo.

Segundo Valter Fanini, o Brasil seguiu desregulamentando o trabalho, reduzindo os direitos trabalhistas e os gastos e investimentos públicos, além de deixar ao mercado a quase exclusividade de comandar a economia. Sabemos que no curto prazo todas estas reformas são recessivas, pois retiram renda do trabalhador e diminuem o consumo das famílias”, explica.

Retirando dinheiro da construção

Um dos principais pontos da retração foi a escolha política do governo de liberar a utilização do FGTS para outros setores da economia que não fossem da construção. É o caso da Medida Provisória 889, que se converteu na Lei 9.932 de 11 de dezembro de 2019, e passou a permitir saques dos saldos das contas ativas e inativas do FGTS, para além das possibilidades previstas anteriormente.

O presidente Jair Bolsonaro e ministros durante Cerimônia de Lançamento do novo FGTS e liberação. Foto: Marcos Corrêa/PR

“O FGTS passou a ser utilizado não só como fonte de recursos para a aquisição da casa própria e para investimentos em infraestrutura (saneamento, mobilidade e etc.), mas também como um instrumento de estímulo ao aquecimento da atividade econômica. A consequência imediata disso foi a redução dos recursos disponíveis para investimento no setor da Construção Civil”, expõe o estudo.


O estudo do DIEESE faz um alerta: “o setor da Construção Civil é dependente de investimentos públicos e privados. Seu desempenho também depende bastante do crédito. Sem a retomada consistente e continuada dos investimentos, o setor tende a manter a tendência de retração ou baixo crescimento verificada nos últimos anos”.

*Série de reportagens – DUAS DÉCADAS de engenharia civil, economia e dinheiro público: O Brasil das grandes obras à pandemia de Covid-19

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