Senge debate propriedade da terra, reforma agrária e agricultura familiar

Senge Paraná
07.JUN.2014

O contexto da propriedade da terra no Brasil, os entraves históricos à reforma agrária com efeito social e a necessidade de mais investimentos para a consolidação da agricultura familiar foram debatidos na manhã de sábado, 7, na reunião estadual preparatória ao 10º Consenge, promovida pelo Senge-PR.

“Para provocar o debate convidamos o oficial nacional de programas da FAO na região Sul, engenheiro agrônomo, ex-presidente da Emater, Carlos Antonio Biasi e o professor de Direito Constitucional e Agrário da PUC, ex-diretor da Funai e procurador geral do Estado, Carlos Marés”, observou o presidente do Senge-PR e da Fisenge, Carlos Roberto Bittencourt.

Foi o segundo e último dia do encontro, que reuniu em Curitiba especialistas, diretores do sindicato e estudantes de engenharia, e teve como resultado a elaboração das propostas que o Senge Paraná irá apresentar na décima edição do Congresso Nacional de Sindicatos de Engenheiros (Consenge), entre os dias 27 e 30 de agosto, em Búzios, no Rio de Janeiro.

O professor de Direito Constitucional e Agrário da PUC-PR, Carlos Marés, abriu as palestras de sábado lembrando do contexto histórico do conceito de propriedade da terra no Brasil. “Para abordar o tema reforma agrária temos que começar com uma pequena reflexão a respeito propriedade privada da terra, que é uma invenção da modernidade, relativamente nova, com cerca de 300 anos desde sua implantação na Europa. Na América Latina, especialmente no Brasil, a propriedade da terra ganhou um conceito diferente. Desde a colonização a terra para agricultura é presa e à qual o acesso nunca foi livre. Sempre houve entraves jurídicos criados por Portugal, França, Inglaterra e Holanda para uma proibição absoluta do seu uso”, destacou Marés.

Marés: É preciso que a terra esteja disponível para a sua finalidade de prover a necessidade de todos os cidadãos e produzir alimentos.

Para obter o domínio total sobre as terras do país no período colonial, os poderes dominantes desocuparam a terra, desconsiderando uso indígena e qualquer outro que não fosse destinado à produção de mercadorias a serem enviadas à Europa. Se estendeu essa política para outras ocupações, entre elas os quilombolas, caboclos e posseiros. “A lei estabeleceu que qualquer ocupação que não fosse orientada e dirigida pelo estado era crime. Toda a estrutura jurídica se manteve intacta desde então. Ou seja, a terra só é considerada legitimamente propriedade quando o estado a concedeu e quando ela tem produção. Se não produzir, o estado pode desapropriar e dar a alguém que produza”, observou o professor.

Modelo colonial – Marés destacou que até hoje a cultura e relativa à propriedade da terra permanece a mesma. “A ideia é que o proprietário pode fazer o que quiser com a terra, inclusive não usá-la. A consequência de não usar é que o Estado, pagando o preço justo e prévio, pode fazer com que alguém use. Se quiser, e quando quiser. Se houver produção, não há direito. E isso está escrito na Constituição de 88, incrivelmente. A propriedade produtiva é imune para desapropriação para fins de reforma agrária. É uma frase de grande peso que combina com a ideologia da propriedade da terra que vem desde o período colonial. Qualquer política agrícola, agrária e de desenvolvimento passa por essa propriedade absoluta da terra que temos no Brasil. Qualquer política que não leve em isso conta não vai ser posta em prática.”

Entraves à reforma agrária – De acordo com Carlos Marés, o tema reforma agrária aparece no Brasil tecnicamente e juridicamente em 1964 “durante a ditadura e por causa da ditadura”. “Jango estava tentando fazer a reforma agrária. Havia grandes mobilizações camponesas e movimentos em torno da redistribuição de terra e da mudança do caráter absoluto do conceito de propriedade. Mas Jango caiu e não houve a reforma. Foi então que, influenciado por acordos com os Estados Unidos, o governo ditatorial fez uma lei de reforma agrária, o estatuto da terra, criado para não ser aplicado”.

O governo militar operou a reforma agrária pela via tributária, não pela função social. Implantou o ITR, imposto progressivo maior para a terra improdutiva. O estado ditatorial ainda criou um instrumento de uso da terra baseado na produtividade, proteção, bem-estar dos trabalhadores, obediência às leis trabalhistas que se não aplicado, permitia o confisco da terra e a sua distribuição a quem produzisse, no caso não os pequenos, mas grandes latifundiários.

“A Constituição de 88, que imaginou a implantação da Reforma Agrária com base na função social da propriedade, prevê o que se traçou em 1964, porém com maior caráter ambiental. É 64 com tinta ambiental. Juristas então ‘torceram a Constituição’ colocando vírgulas, subtítulos e sobreposições que aniquilam a possibilidade da realização da reforma agrária. Um desses entraves é o dispositivo que diz ‘não haverá desapropriação para fins de reforma agrária da propriedade produtiva e da pequena propriedade”, observou Marés.

“Há uma técnica jurídica que diz que quando você não quer que se aplique alguma coisa, diz assim: segundo a lei… Não tem lei, não se aplica. E nenhum ponto da Constituição exige mais leis que esses poucos artigos da questão agrária e agrícola. Alguns artigos precisam de mais de uma lei e outros precisam de lei complementar. A técnica legislativa fez com que se esvaziassem completamente os dispositivos cidadãos da reforma agrária. Digo que a pior parte da Constituição está nas políticas agrícola e agrária. É inaplicável. Nenhum governo promoveu essas reformas”, afirmou.

De acordo com o professor de Direito Constitucional e Agrário da PUCPR, única reforma feita foi a capitalista de aplicar incentivos financeiros sobre implementos agrícolas. Isso começou, segundo ele, na ditadura e cresceu com leis de propriedade intelectual de cultiváveis, sementes e agrotóxicos. “Esse conjunto de propriedade intelectual, ideia internacional imposta ao Brasil, se somou ao terrível conceito de propriedade absoluta da terra. Os critérios de registro, certificação e patente, derivados da propriedade intelectual, inviabilizam as tentativas da não produção em grande escala para exportação. É uma questão que nasce no Brasil sob a perspectiva internacional desde o período colonial. Se repararmos bem veremos que a primeira produção de cana de açúcar no Brasil tem o mesmo sentido da produção incentivada de soja hoje em nosso país. É a mesma ideia. A do incentivo a um produtor de produto primário para a exportação. É um modelo que para ser usado depende da propriedade absoluta da terra, da terra intocada”, completou o jurista.

A primeira lei de terras no Brasil se chamava “Lei de Sesmarias” de restrição ao uso da terra. Marés disse que a ideia continua exatamente a mesma, ou seja, a terra brasileira deve ser usada para a produção genérica, de monocultura, com fins de exportação.
“A reforma agrária tem que ter hoje o sentido de modificar o conceito da propriedade da terra. É preciso que a terra esteja disponível para a sua finalidade que é a de prover a necvessidade de todos os cidadãos e produzir alimentos para todos os brasileiros”, defendeu Carlos Marés.

É preciso investir em quem leva a comida à mesa dos brasileiros

Se a reforma agrária é fundamental para que a terra cumpra o seu papel essencial no contexto produtivo, a valorização da agricultura familiar é fundamental para garantir a segurança alimentar da população brasileira.

“No Paraná há cerca de 320 mil agricultores familiares. São 900 mil na região Sul e 4,5 milhões em todo o Brasil. É um contingente responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros, cultivados em pouca área de terra. No Brasil, 1% dos agricultores detém 44% das terras. É uma inversão, na qual podemos ver a quem a política agrícola privilegiou ao longo dos anos. É grande a necessidade de incentivos que os agricultores familiares têm para continuar nos alimentando ”, afirmou o engenheiro agrônomo e oficial Nacional de Programas da FAO Região Sul, Carlos Antonio Biasi. No mundo há 500 milhões agricultores familiares responsáveis por alimentar a população inteira do Planeta.

O especialista considera preocupante a tendência anunciada da diminuição expressiva da população em áreas rurais nos próximos anos sob a ótica da necessidade da produção de alimentos. “Dizem que em 2050 teremos apenas 8% da população vivendo em meio rural. Serão esses 8% que irão produzir as commodities e os alimentos. Fica a pergunta: Como iremos nos alimentar em 2050?”, questionou Biasi.

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Biasi: “É preciso que a sociedade entenda a relevância da agricultura familiar na produção e na erradicação da fome e da pobreza.”

Para ele, isso levará ao desenvolvimento da agricultura em áreas periurbanas no entorno das grandes cidades. “É uma tendência que tende a crescer no Brasil e é o que já acontece em algumas regiões da Europa onde a terra é escassa”, observou.
Biasi lembrou que 2014 é o Ano Internacional da Agricultura Familiar. “Foi criado para fazer com que as pessoas do meio urbano comecem a entender a função da agricultura familiar”, disse. Trata-se de um processo de conscientização e educação sobre a importância desse segmento que responde pelo alimento produzido e que está presente também na merenda escolar. “A agricultura familiar é responsável pela segurança e a soberania alimentar. No Sul do país, por exemplo, 40% dos produtos que compõem a merenda escolar são orgânicos”, salientou.

Na opinião do especialista, o destaque mundial dado neste ano à agricultura familiar é uma sinalização importante. “É um alerta para que toda a sociedade entenda a relevância da agricultura familiar na produção e na erradicação da fome e da pobreza”, afirmou.
Organização e investimento – Carlos Biasi defende que haja o aumento do investimento neste setor produtivo. No que diz respeito ao investimento global na agricultura, de 2003 a 2013 o crédito rural para o agronegócio cresceu 400%, sendo que especificamente para a agricultura familiar, o aumento foi de 289%. No entanto, a inadimplência do agricultor familiar é muito pequena, comparativamente ao que se vê no chamado agribusiness. “Volta e meia vemos os representantes do agronegócio recorrendo à Câmara Federal para negociando dívidas não pagas. Se trabalha numa perspectiva de que não precisa pagar porque depois baixam os juros etc…”.

Organização para crescer – O oficial da FAO considera de suma importância a organização do setor, para agregar valor à produção e reduzir as dificuldades de manutenção das atividades. Entre os maiores desafios do setor, Biasi aponta a sucessão familiar; o aumento de investimentos; a representação política; fomento à assistência técnica e à pesquisa e o aumento da participação dos jovens e das mulheres.

“O êxodo dos jovens é um dos problemas mais sérios. Não existem políticas públicas para reverter este quadro preocupante. Na Europa, por exemplo, a agricultura familiar é pequena, porém consolidada. Por isso é necessária a maior participação dos jovens e das mulheres neste segmento. Quanto aos investimentos, em 99% das propriedades o agricultor familiar está próximo do asfalto. Porém, em muitas áreas falta infraestrutura de comunicações e o essencial acesso à internet. A maior representatividade política do setor é muito importante para que haja o avanço em igualdade de condições. Também é necessário que haja uma política agrícola sustentável que garanta assistência técnica e investimento em pesquisa para a implantação de sistemas de produção adequados à agricultura familiar”, observou.

O agricultor familiar – Considera-se agricultor familiar aquele que desenvolve atividades econômicas no meio rural e que atende alguns requisitos básicos, tais como: não possuir propriedade rural maior que 4 módulos fiscais – (o módulo fiscal varia de 5 a 100 hectares, conforme o município) – utilizar predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas de propriedade; e possuir a maior parte da renda familiar proveniente das atividades agropecuárias desenvolvidas no estabelecimento rural. São também agricultores familiares pescadores, quilombolas e indígenas.

O chamado módulo fiscal é uma unidade territorial agrária, fixada por cada município brasileiro baseados na Lei Federal nº 6.746/79. O tamanho do módulo fiscal, para cada município, é determinado levando-se em consideração: o tipo de exploração predominante no município e a renda obtida com ela; outras explorações importantes (seja pela renda ou área ocupada) existentes no município; e o conceito de “propriedade familiar”, definido pela Lei nº 6.746/79.

Por que a agricultura familiar é importante?
A agricultura familiar e de pequena escala estão intimamente vinculados à segurança alimentar mundial.

A agricultura familiar preserva os alimentos tradicionais, além de contribuir para uma alimentação balanceada, para a proteção da agrobiodiversidade e para o uso sustentável dos recursos naturais.

A agricultura familiar representa uma oportunidade para impulsionar as economias locais, especialmente quando combinada com políticas específicas destinadas a promover a proteção social e o bem-estar das comunidades.

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