Síndrome de Burnout tem remédios jurídicos

O esgotamento profissional pode ser prevenido em cláusulas de negociações coletivas

O esgotamento profissional é cada vez mais presente. Foto: Pixabay
Comunicação
29.ABR.2022

A Síndrome de Burnout é caracterizada pela exaustão extrema, estresse e esgotamento físico decorrente do excesso de trabalho. Também é conhecida como “Síndrome do Esgotamento Profissional”. É comum em profissionais que atuam sob pressão, com metas muito altas e prazos curtos. Desde 1º de janeiro de 2022 é considerada uma doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Para enfrentá-la existem procedimentos psicológicos e também “remédios jurídicos”.

Nesta conversa com Anderson Dionisio, especialista em Direito do Trabalho e advogado do escritório Trindade e Arzeno, que presta assessoria para o Senge-PR, ele esclarece sobre onde as “dosagens de direitos” devem ser aplicadas para prevenir a síndrome. Ainda discute a síndrome no contexto da pandemia, observando o retorno ao trabalho presencial e também o remoto, bem como o “direito a se desconectar”.

SENGE-PR: As pessoas têm direito a se desconectar do trabalho? Qual é a importância disso?

Anderson Dionisio: Sim. A noção de desconexão do trabalho está relacionada à necessidade de limitação da jornada de trabalho como uma camada de proteção da saúde dos trabalhadores. No fim do século XIX e início do século XX, grandes greves gerais foram organizadas ao redor da pauta pela limitação da jornada de trabalho diária em 08h, considerando os graves danos à saúde que eram causados por jornadas de trabalho longas. Contemporaneamente, discutem-se fortemente os impactos do trabalho sobre a saúde mental do trabalhador, especialmente a importância de que se resguarde tempo suficiente para que ele desenvolva outros aspectos de sua vida pessoal. Um desafio ao direito à desconexão é o avanço desenfreado do uso de ferramentas tecnológicas no mundo do trabalho, que acabam por facilitar a integração do trabalhador ao ambiente de trabalho, mas também acabam impedindo que este se desligue totalmente de suas atividades. Nos últimos anos, inclusive, em razão da pandemia do novo coronavírus, muitos trabalhadores passaram a trabalhar diretamente de suas residências, e então este cenário de integração ao ambiente do trabalho transforma-se em algo absolutamente insustentável (do ponto de vista da saúde mental do trabalhador).

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SENGE-PR: Assédio Moral pode levar a pessoa a ter síndrome de Burnout ou é equivocada essa relação?

Anderson Dionisio: Assédio moral, de acordo com a médica e pesquisadora francesa Marie-France Hirigoyen, é “toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo, por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou integridade física ou psíquica de uma pessoa, por em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho”. No âmbito da doutrina e jurisprudência trabalhistas, o assédio moral passou a ser compreendido como sendo um conjunto de condutas abusivas e intencionais, reiteradas e prolongadas no tempo, que podem ser direcionadas a um trabalhador específico (seja pelo chefe ou pelos colegas) ou a um grupo de trabalhadores. E assim sendo, não é incomum que situações envolvendo assédio moral acabem por acarretar o surgimento da síndrome de Burnout. Juridicamente, contudo, não existe uma resposta certa, uma vez que cada caso deve ser avaliado individualmente. No âmbito do processo, para que se reconheça a existência de uma doença ocupacional, é imprescindível a comprovação de existência do chamado “nexo de causalidade”, que é justamente a relação concreta entre a doença de que o trabalhador é portador e o ambiente de trabalho. É possível então a existência de relação entre o assédio moral e a Síndrome de Burnout, mas apenas através de análise médica é que será possível confirmar este fato.

Programa Senge Play discutiu a Síndrome do Esgotamento Profissional. Foto: Reprodução

SENGE-PR: Como colocar na pauta das negociações coletivas e individuais cláusulas que previnam ou inibam o esgotamento profissional?

Anderson Dionisio: A atuação sindical para tentar coibir situações de esgotamento profissional, no âmbito de negociações coletivas, pode se dar através do fortalecimento de cláusulas que regulamentam o controle de jornada (como forma de evitar que os trabalhadores realizem jornadas extenuantes); por meio do estabelecimento de cláusulas que estabeleçam multas para a empresa no caso da prática de assédio moral (que, como visto, guarda alguma relação com a Síndrome de Burnout no ambiente de trabalho); por meio da proposta de regulamentação de um comitê interno para acompanhamento de denúncias envolvendo situações de assédio moral, ou de outras situações que possam contribuir ao esgotamento dos trabalhadores; por meio da regulamentação e do fortalecimento de medidas protetivas (como a orientação de que sejam realizados acompanhamentos com psicólogos de forma regular). E, além disso, o Sindicato pode atuar como fiscalizador das condições de trabalho, bem como das condições de saúde dos trabalhadores, seja por meio da eleição de associados para a CIPA, seja diretamente (considerando a missão constitucional de representação dos trabalhadores.

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SENGE-PR: Na sua opinião, jornadas de trabalho extenuantes podem levar ao cansaço extremo? As negociações devem abordar esse tema? Por que reduzir a jornada, muitas vezes, é visto como “trabalhar menos”?

Anderson Dionisio: Sim. Historicamente os trabalhadores sofreram com o desgaste físico e mental em razão do desempenho de longas jornadas, o que acarretaram na organização de movimentos sociais grevistas – o dia 01° de maio é considerado o dia do trabalho em razão de uma greve geral ocorrida em Chicago que buscava, dentre outros aspectos, a regulamentação e a redução da jornada diária de trabalho para 08h. Os Sindicatos podem (e devem) buscar negociar mecanismos que viabilizem o desempenho de jornadas de trabalho mais enxutas (06h diárias, 35h semanais, dentre outras), tal como ocorre em outros países ao longo das últimas décadas, de forma a (1) garantir o direito à desconexão dos trabalhadores, e (2) proteger a saúde dos trabalhadores. Infelizmente, são demandas que certamente enfrentarão grande e feroz resistência, considerando que nossa sociedade é organizada sobre uma visão religiosa de muitas coisas, dentre as quais o trabalho (“o trabalho dignifica o homem”), especialmente nos casos em que a ausência deste é encarada como o equivalente a “vagabundagem”. Na prática, contudo, existem estudos que apontam a redução da jornada de trabalho como sendo responsável por um aumento na produtividade dos trabalhadores (que descansam mais, ficam mais tempo fora do ambiente de trabalho, e consequentemente, vivem mais sua vida para além do trabalho).

SENGE-PR: Na legislação, a Síndrome do Esgotamento mental não consta do DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Ela está registrada na CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde), recebendo a classificação Z730 – Esgotamento, presente dentro da categoria de Problemas relacionados com a organização do modo de vida (Z73). A legislação, neste sentido, precisa ser aperfeiçoada? Qual é o tempo de afastamento, em caso de necessidade.

O inciso I do art. 20, da Lei n° 8.213/1991, estabelece que doença profissional, é “assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social”, enquanto que o inciso II estabelece que doença do trabalho é “assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I”. No primeiro caso estamos diante de doenças que surgem em razão da função desempenhada, enquanto que no segundo caso estamos diante de doenças que surgem em razão da atividade e de aspectos ambientais do trabalho. Conforme redação da Portaria n° 2.309/2020 da então Secretaria do Trabalho e da Previdência Social do Ministério da Economia, a Síndrome do Esgotamento é considerada doença profissional relacionada a agentes e/ou fatores de risco psicossociais no trabalho. Assim, sob a ótica da legislação atual, é plenamente possível o enquadramento da Síndrome de Burnout como sendo uma doença do trabalho – o enquadramento enquanto doença profissional é tecnicamente inadequado, considerando que se presume que nenhuma atividade, por sua própria natureza, exige a exposição a fatores psicossociais do trabalho (como discriminação, assédio, dentre outros). A questão é que o enquadramento depende da comprovação de existência de nexo de causalidade entre a doença e a atividade desempenhada. Quanto a possibilidade de afastamento e o tempo necessário para o mesmo, isto depende do caso concreto e da situação de saúde em que o trabalhador se encontre, uma vez que nos termos do art. 59 da Lei n° 8.213/1991, o “auxílio-doença será devido ao segurado que (…) ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivo”. Se for reconhecido, através de perícia oficial do INSS, a existência da doença e a incapacidade ao trabalho em razão da mesma, o benefício previdenciário será concedido pelo período que for reconhecido como necessário para a recuperação do trabalhador.

Existem estudos que apontam a redução da jornada de trabalho como sendo responsável por um aumento na produtividade dos trabalhadores. Foto: Pixabay

SENGE-PR: Você já atendeu processos relacionados à Síndrome de Burnout? O que você pode nos contar?

Anderson Dionisio: Sim, já tive a oportunidade de atender dois clientes que receberam diagnóstico clínico (particular) de estarem acometidos pela Síndrome de Burnout, o que levou os mesmos a ingressarem com ação judicial em face de seus ex-empregadores, pleiteando o reconhecimento da natureza ocupacional da doença, e consequentemente, o pagamento de indenizações decorrentes de tal fato. Continuamente, em ambos os casos, havia relatos da prática de assédio moral no ambiente de trabalho, e também o pedido pelo pagamento de indenizações em razão do dano sofrido pelo assédio. No caso em que eu tive a oportunidade de acompanhar a perícia, infelizmente, não foi obtido o reconhecimento da síndrome de Burnout, grande parte em razão da forma como se analisaram os fatos narrados no processo, mas também, em razão de uma certa resistência (por parte dos peritos médicos) no enquadramento do Burnout como doença ocupacional. Em pesquisa na jurisprudência não é incomum localizar decisões de improcedência envolvendo ações que versaram sobre um possível enquadramento de uma doença como sendo síndrome de Burnout. Isto se dá pois o estudo sobre a doença e o alcance da mesma ainda está sendo desenvolvido e aprofundado, restando, assim, a esperança de que em casos futuros seja possível uma melhor compreensão da doença e dos meios de combatê-la.

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