ENTREVISTA: Engenharia civil precisa de um projeto de país

“Nós, engenheiros, deveríamos nos interessar e nos engajar muito mais pelas questões que são decisivas para o desenvolvimento econômico e social do país”.

O engenheiro Valter Fanini analisa as duas décadas de construção civil, cenários econômicos e políticos. Foto: Anderson Tozato/CMC

Por Manoel Ramires/Senge-PR*

20 anos. 5 mandatos presidenciais. Quatro presidentes. Dois rumos políticos econômicos. Esse período e a conjuntura política e financeira brasileira são tempo suficiente para analisar o avanço e o retrocesso da engenharia civil brasileira neste século. Da década de ouro, com investimento público e privado à recessão econômica com o receituário neoliberal que está enfraquecendo o setor e as empresas nacionais, muitas experiências e protocolos podem ser aprendidos. Um deles é que o rumo atual não deve trazer novamente o crescimento econômico, a produção e o emprego.

Nesta entrevista com o engenheiro civil, secretário-geral da Fisenge e mestre em Desenvolvimento Econômico pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), Valter Fanini, ele avalia os fatores econômicos e sociais e as suas influências para os engenheiros. “Vivia-se um momento político conturbado com um claro confronto entre Executivo e Legislativo que impossibilitava a efetivação de políticas econômicas anticíclicas”, avalia Fanini sobre o período em que a Era iluminada começou a se chispar.

Nos últimos 20 anos, a engenharia civil conseguiu caminhar independente do cenário econômico do país ou se mistura com os momentos de avanços e crises?

Valter Fanini: A Engenharia Civil e a construção civil, da mesma forma que os demais setores da economia, dependem e funcionam atreladas às condições gerais da macroeconomia doméstica. Portanto a ascensão ou o declínio de determinado setor em determinado período, somente poderá ser explicado a partir de um olhar sobre as variáveis macroeconômicas que influenciaram ou influenciam de forma significativa a demanda de bens e serviços pelas famílias, o nível de investimento, os gastos do governo e a exportação líquida que somados formam a demanda agregada da economia, cuja principal medida é o PIB – Produto Interno Bruto.

Qualquer alteração para mais ou para menos e um desses fatores da demanda acabará por influenciar as demais e vice-versa. No entanto, é o investimento e os gastos do governo que podem ser alterados por decisões da classe empresarial ou da classe política dirigente, executivo e legislativo, já que os gastos das famílias dependem do nível salarial que não é definida pela classe trabalhadora e as exportações dependem do nível de competitividade da nossa economia, das demandas externas e do valor do câmbio, que são fatores exógenos à economia doméstica.

A partir destas premissas podemos responder algumas questões ligadas ao passado recente da engenharia civil e da construção civil e prospectar alguma coisa para seu futuro.

Porque a engenharia civil e a construção civil permaneceram com baixos índices de crescimento logo após o plano real quando imaginávamos que vencido o processo de hiperinflação teríamos o campo aberto para um vigoroso crescimento econômico e consequentemente elevação da demanda de bens de consumo e de capital ligado à engenharia civil?

Valter Fanini: Porque logo após a implantação do Plano Real o principal objetivo do governo era manter o controle da inflação e não fazer a economia crescer. Para isto toda a política econômica voltou-se para controlar um eventual excesso de demanda e não para ampliá-la. Ou seja, conter a demanda para que não houvesse pressão sobre os preços.

Dessa forma o governo Fernando Henrique Cardoso promoveu um elevado contingenciamento do orçamento fiscal, reduzindo gastos e investimentos públicos, manteve a taxa básica de juros elevada desincentivando os investimentos privados, efetuou controle de crédito ao consumidor, desacelerou a execução da política habitacional e abriu a economia para produtos importados com uma taxa de câmbio amplamente favorável aos importadores. Num ambiente macroeconômico como este, a construção civil somente cresceria por milagre.


Porque tivemos uma retomada do crescimento da construção civil a partir do ano de 2002 com um crescimento mais vigoroso a partir de 2007, 2008?

Valter Fanini: Porque a partir de 2002, 2003 os fatores que ameaçavam a estabilidade de preços e o desequilíbrio do balanço de pagamento começaram se arrefecer, o que significa que o Governo poderia colocar em práticas políticas que incentivassem o crescimento econômico através do aumento da demanda. O que vimos a partir de então foi um aumento da massa salarial através do aumento do salário-mínimo, uma melhor distribuição de renda através dos programas sociais, principalmente do Bolsa-Família, que deram início a um crescimento econômico puxado pelo consumo das famílias. Este crescimento econômico inicial melhorou as expectativas dos empresários que começaram a investir, finalmente entrou o setor público aumentado os seus gastos e ampliando os investimentos diretos e indiretos através de estatais com o programa que convencionou-se chamar de PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. Além disso tivemos um ciclo de valorização de nossas commodities minerais e agrícolas que garantiram uma tranquilidade em nosso balanço de pagamentos. Tudo isto contribuiu para a formação de um ciclo virtuoso na economia, o que favoreceu enormemente a construção civil e a engenharia civil, anunciando-se na época até um apagão de engenheiros civis como uma falta generalizada de engenheiros civis no mercado, o que não era verdade.

Foto: Dênio Simões/ Agência Brasília

O que fez com que este ciclo virtuoso tivesse fim e o Brasil entrasse em recessão em 2015 e 2016 com graves consequências para a construção civil?

Valter Fanini: Como afirmamos em nossas colocações iniciais em uma economia tocada pelo regime capitalista o bom desempenho econômico vai depender das decisões de duas classes sociais, da classe empresarial e da classe política. Portanto uma crise econômica interna sempre terá origem nas decisões desse grupo de pessoas, a não ser que tenha origem em fatores externos, como a crise econômica dos anos 80 que foram provocadas pelo segundo choque de oferta do Petróleo e pelo brutal aumento das taxas de juros internacionais.

No meu ponto de vista, a recessão de 2015 e 2016 foram provocadas pelo desencontro entre política governamental e expectativas empresariais. O governo federal havia inaugurado uma época de enormes incentivos fiscais com o objetivo de aumentar a poupança empresarial buscado com isto o aumento dos investimentos privados.

Como decorrência dos incentivos fiscais, as receitas públicas foram reduzidas obrigando a redução dos investimentos públicos. No entanto, boa parte deste excedente de poupança empresarial acabou virando remessa de lucros ao exterior ou depósitos em fundo DI (renda fixa). Sabe-se pela teoria macroeconômica que poupança não investida é igual recessão.


O governo errou ao incentivar o empresariado, reduzindo a arrecadação?

Valter Fanini: A saída a época seria aumentar os investimentos públicos para compensar a falta de investimentos privados garantido a manutenção da demanda e evitando a recessão. No entanto, vivia-se um momento político conturbado com um claro confronto entre Executivo e Legislativo que impossibilitava a efetivação de políticas econômicas anticíclicas. A este confronto entre Executivo e Legislativo somava-se uma enorme desconfiança popular na classe política promovida pela operação “Lava Jato” que desestabilizava o governo e piorava enormemente as expectativas dos demais agentes econômicos. Era a combinação perfeita para sustentar um processo recessivo.

Passada a crise política, por que após a saída da Presidente Dilma a economia não voltou a crescer?

Valter Fanini: Por dois motivos principais: o Governo Temer abandonou a política desenvolvimentista que vinha sendo adotada pelos governos anteriores e passou a adotar uma agenda de reformas institucionais com viés altamente neoliberal. Ou seja, desregulamentar o trabalho, reduzir os direitos trabalhistas, reduzir os gastos e investimentos públicos, deixando ao mercado a quase exclusividade de comandar a economia. Sabemos que no curto prazo todas estas reformas são recessivas, pois retiram renda do trabalhador e diminuem o consumo das famílias. O crescimento voltaria caso houvesse uma enorme disposição da classe empresarial em investir mesmo tendo a demanda retraída. O que parece pouco provável.

(Brasília – DF, 08/02/2017) Cerimônia de Anúncio do Calendário de Saque de Contas Inativas do FGTS. Foto: Marcos Corrêa/PR

Então o que os engenheiros poderiam fazer para melhorar a empregabilidade e os salários? Era possível se desatrelar desse cenário?

Valter Fanini: Acho que nós, engenheiros, deveríamos nos interessar e nos engajar muito mais pelas questões que são decisivas para o desenvolvimento econômico e social do país. Para isto é muito importante que tenhamos além dos conhecimentos técnicos inerentes às nossas profissões, algum discernimento do funcionamento das economias capitalistas, do funcionamento do aparelho do estado e dos fundamentos da ação política. Ou seja, temos que ser agentes da política e não ficar a margem dela adotando sempre algum salvador da pátria que aparece como paladino de alguma causa moral.

Nossas entidades de classe deveriam ser os centros do debate das políticas econômicas que nos afetam para que de forma coletiva pudéssemos influenciar os parlamentos e os governos naquilo que nos interessa ou, pelo menos, ajudar a sociedade na escolha de uma classe política efetivamente comprometida com o país.


A gestão do ministro Paulo Guedes à frente da economia não aprofunda o desinvestimento público, e consequentemente, não serve de mola para a retomada do crescimento? Sem um mercado interno forte, há condições para revigorar setores como da construção de edifícios e infraestrutura?

Valter Fanini: Com o término do Governo Dilma, os economistas que assumiram a área econômica do governo federal, inicialmente com o ministro Meirelles e agora com Guedes, tem visão econômica bastante distinta daqueles dos governos Lula e Dilma. Enquanto os do Governo Lula e Dilma se orientavam por uma visão com forte influência do Keynesianismo e da visão de economistas nacionais como Celso Furtado, conhecidos como desenvolvimentistas, o pessoal de Temer e Bolsonaro orientam-se muito mais pela visão do novo liberalismo ou do neoliberalismo que o Estado tem pouco ou quase nenhum papel a exercer na economia, a não ser fornecer uma moeda estável com inflação controlada.

A crise da Covid-19 veio como uma avalanche sobre eles e os deixaram sem rumo. Enquanto a pandemia chegava e apavorava o país, eles continuavam a repetir a cantilena de que bastava seguir com conjunto de reforma propostas e tudo estaria resolvido.


Tanto que quase todas as iniciativas de salvamento da economia de empregos e empresas saíram do Congresso Nacional enquanto eles permaneciam agarrados aos seus dogmas de que o Estado não deveria intervir. A realidade se impôs e eles tiveram que recuar em seus dogmas e promover uma forte intervenção do Estado, não somente com ajudas emergenciais em crédito e dinheiro a fundo perdido, como na mediação de relações entre empregadores e empregados.

Portanto o pensamento econômico dominante do governo promove sim um desinvestimento público e não coloca o Estado como protagonista do processo de saída da crise econômica. Desta forma, as experiências históricas sobre crises econômicas desta natureza mostram que a saída através do investimento privado é lento e incerto. Com isso podemos afirmar que ou o Governo Federal muda a sua visão sobre o papel do Estado na retomada do crescimento econômico ou permaneceremos por um longo tempo em estagnação econômica.

*Série de reportagens – DUAS DÉCADAS de engenharia civil, economia e dinheiro públicoO Brasil das grandes obras à pandemia de Covid-19

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